Olá, meus docinhos, como vocês estão?
Quem acompanhou A Governanta sabe que eu tinha prometido postar o epílogo e que até hoje não postei. Eu poderia dar um zilhão de desculpas, mas a única que valeria seria: estou escrevendo o início, depois vou para o final. Sim, meus queridos, estou trabalhando na parte extra de A Governanta, que - em outras palavras - será a versão que publicarei (espero que em breve).
E sabe o que eu estou fazendo aqui? Vim disponibilizar para vocês o capítulo um da parte 0 (sou uma autora muito boa, não sou?). Essa versão ainda é um "esboço" e mudanças menores poderiam ser feitas, mas espero que gostem. Desculpa se passou algum erro, já corrigi algumas vezes e espero que esteja tudo nos conformes, mas alguns passam, não é mesmo?
A parte 0 é o pré-Inglaterra, começando na infância de Sam, até o momento em que ela saí de casa. Estão animados para ler? Então vem comigo!
Obs: Contém drama (como sempre :3)
A França era um lugar lindo sob os raios do verão. O
sol brilhava intensamente, as cores no quintal reluziam e os pássaros
cantavam alegres e planavam baixo, passando a centímetros de minha
janela. Estava uma tarde muito feliz, mas a natureza se mantinha
alheia a todo o sofrimento que eu havia sido forçada a ocultar
dentro do quarto.
Eu estava ajoelhada perto da janela, escondendo-me entre
o parapeito e o cortinado. Dali dava para ver o cortejo que levava o
caixão e era um bom esconderijo para que ninguém lá embaixo me
visse. Mantinha-me em silêncio, deixando as lágrimas correrem
timidamente pelo meu rosto e fingindo não notá-las. Naquele caixão
estava a pessoa que eu mais amava em toda a minha vida.
— Oh, mamãe! — Sussurrei entre soluços engolidos.
— Eu sinto muito não estar aqui quando a senhora mais precisou de
mim.
O cortejo era formado por papai, três empregados e
Heloíse, minha governanta, que os acompanhava mais afastada,
arrastando seu longo e pesado vestido negro sobre a grama
verde-esmeralda. Rumavam para a Igreja não muito longe de minha
casa, onde minha irmã havia sido enterrada e eu sabia que agora
havia um profundo buraco esperando por mamãe.
Eu queria poder acompanhá-los, mas me trancaram no
quarto antes mesmo do sol nascer e eu continuava lá dentro. Pelo
menos, a minha janela era um bom observatório. Assisti enquanto eram
levados para o sepultamento. Vi quando sumiram pela rua e quando
voltaram mais tarde. Só então me retirei de meu esconderijo. Fechei
as cortinas e me deitei na cama, escondendo a cabeça sob o
travesseiro e não mais me importando com qualquer barulho que meu
choro pudesse causar.
A dor que sentia não podia ser medida e eu não iria
fingir que ela não existia ou me impedir de chorar. Fiquei entregue
àquele estado até cair no sono. Sonhei com as lembranças do dia
anterior, o pior dia de minha vida até aquele instante.
Don e Isabele Roche corriam na minha frente, gargalhando
alto de minha pessoa que se esforçava para acompanhá-los. Era uma
brincadeira de pegar e eu era a pior entre eles, mas não desistia
tão facilmente e normalmente conseguia agarrar Isa quando ela se
cansava. Foi o que aconteceu, ela ficou um pouco para trás e eu
pulei em seu alcance, caindo nós duas no chão às gargalhadas. Don
veio a nosso encontro e riu também.
Os dois eram irmãos e moravam duas ruas abaixo da
minha. Isa era quatro anos mais velha do que Don e eu, mas sempre
brincava com nós dois e nos tratava como seus animaizinhos de
estimação. Era uma garota alta e que parecia mais velha do que seus
dez anos. Seus longos cabelos negros estavam presos em uma trança
que havia se bagunçado com toda a correria. Sua bochechas finas e
delicadas estavam vermelhas de cansaço e seus olhos cor de mel
faiscavam de animação.
— Ah, eu não queria perder para a Samantha. — Ela
fechou a cara em uma expressão engraçada e mimada. — Ela nunca
consegue correr tanto quanto nós dois.
— Mas eu consegui te pegar de novo. — Eu respondi
ainda em cima dela. — Não sou tão ruim assim.
— É sim, garotinha. — Don me puxou pela cintura,
erguendo-me no ar e me colocando de lado.
Ele tinha a mesma idade que eu, mas, assim como sua
irmã, parecia mais velho. Seu rosto não era tão delicado quanto o
de Isa, pelo contrário, assemelhava-se bastante ao meu, que era
redondo e sardento. Porém, os olhos dos dois eram idênticos e
sempre possuíam uma animação que me contagiava em qualquer
situação.
— Querem brincar de mais o quê? — Isabele
finalmente se ergueu e se colocou na nossa frente.
— Eu preciso ir para casa. — Arrumei meu vestido que
agora estava sujo e amarrotado, muito mais do que
eu esperava que ficasse. — Mamãe já deve
estar preocupada.
— A nossa também. — Don revirou os olhos, mas ria
como se não se importasse nenhum pouco. Eu não me divertiria
pensando aquilo, já que tentava nunca preocupar minha mãe. —
Então nos vemos em breve, Sam.
Abracei-os com força e corri de volta para casa. Já
havia passado da hora de voltar e eu tinha certeza que Heloíse
reclamaria da condição de minhas roupas e da hora. Então, me
esforcei para correr o máximo que conseguia e encurtar o tempo que
normalmente levaria das ruas até o pátio de casa.
Preferi entrar pelos fundos, passando pela porta da
cozinha e assim evitando Heloíse, mas foi apenas a cozinheira
Paulette abrir a porta, e eu correr até o vestíbulo, que ela
apareceu e me agarrou pelo braço. Puxou-me em direção ao meu
quarto sem falar nada, enquanto eu lutava para me desvencilhar de sua
imensa mão e continuar meu caminho para o quarto de mamãe. Ela
parecia estar com muita pressa e eu não me interessava nenhum pouco
em saber seus motivos.
Mas então papai saiu de seu quarto e nós duas paramos
no corredor, encarando-o estupefatas, como se não esperássemos
encontrá-lo ali, mesmo aquela sendo a sua casa.
— Papai! — Falei animada e puxei meu corpo para
longe das mãos da governanta, que tinham se afrouxado um pouco ao
ver o patrão. Eram raros os momentos que papai estava em casa e eu
não iria perder a oportunidade de abraçá-lo. Agarrei-o pela
cintura, mas ele logo me afastou com repulsa. Subi os olhos
tristonhamente para sua face e notei que ele estivera chorando.
— O que foi, papai? Aconteceu alguma coisa?
— Heloíse. — Ele fez um gesto para que ela voltasse
a me pegar. — Leve ela para o quarto.
— Eu quero ver mamãe antes, papai.
— Não vai ver sua mãe não! — Ele franziu a testa,
e percebi que o que estava errado tinha alguma coisa a ver com minha
mãe. Heloíse voltou a me segurar com ainda mais força, fincando
suas longas unhas em minhas mangas.
— Mamãe?! — Chamei alto, esperando que ela ouvisse
de seu quarto que não era tão distante. Não veio resposta. —
Mamãe?! Mamãe?!
— Pare de gritar! — Meu pai me repreendeu. — Você
quer ver sua mãe? Então vai lá vê-la. Só não me culpe pelo que
encontrará.
A governanta me soltou e eu corri para a porta fechada
do quarto de mamãe. Mesmo tendo sido avisada, eu nem ao menos
hesitei. Para mim não se tratava de algo sério, apenas papai em um
mal dia, então entrei de uma vez e me deparei com a cena que nunca
minha cabecinha de seis anos apagaria de sua memória.
O quarto estava escuro e abafado. Mamãe estava deitada
em sua cama, vestindo uma camisola branca e coberta com a manta até
os seios, mesmo com o calor que estava ali dentro. Caminhei
vagarosamente até o seu lado e coloquei a mão sobre suas mãos
cruzadas sobre a barriga. Ela estava fria e, em minha cabeça, era
por causa daquilo que as coisas deveriam estar quentes no quarto,
para que ela pudesse se esquentar também.
Arrumei sua manta ainda mais alto e passei os dedos
carinhosamente em sua testa, colocando de lado uma madeixa molhada
que descia pela pele azulada.
— Mamãe, tá na hora de acordar. — Beijei sua
bochecha. Ela não se moveu. — Eu cheguei, mamãe. Vamos ler alguma
história e brincar juntas.
Ela continuava estática, sem responder a nada.
Balancei-a levemente pelo ombro e nem sinal dela despertar.
Papai e Heloíse estavam parados na porta, encarando-me
sérios.
— Papai. — Corri até ele. — Por que a mamãe não
quer acordar?
Ele se manteve em silêncio. Eu tentava puxá-lo pela
mão para próximo da cama, mas ele se recusava a se aproximar.
Então, eu me virei para a outra pessoa, mesmo ela sendo a última
que eu escolheria em qualquer situação. O desespero me fez recorrer
a todas as ajudas.
— Mademoiselle
Tissot — Falei baixinho. — Por que a mamãe não quer acordar?
— Ela não vai mais acordar. — Heloíse respondeu
sem nenhum sentimento em sua voz, quase tão fria quanto a pele de
mamãe. — Sua mãe está morta, Samantha. Ela não vai mais
acordar.
— Isso é mentira! — Gritei e corri de volta para
junto da minha mãe. Abracei-me com força a seu corpo e sussurrei,
temendo que se eu falasse mais alto, choraria: — Acorde, mamãe.
Vamos… Está na hora de acordar.
— Eu já disse que ela não vai acordar. — A
governanta me puxou pelo ombro e eu me agarrei com mais força ao
corpo. Agora não conseguia mais não chorar. Eu soluçava alto e
sentia meu peito doendo.
Ela não estava morta, aquilo não podia ser verdade.
Sua expressão era a mesma de sempre quando dormia, ela não estava
morta, ela não podia me deixar daquele jeito. Eu não conseguia
acreditar que ela tinha ido embora e me deixado ali.
A governanta me agarrou pela cintura e me carregou até
meu quarto, mesmo eu esperneando e gritando que queria ficar com a
minha mãe e que aquilo não era justo. Ela me colocou sentada no
chão e trancou a porta antes que eu tivesse tempo de correr.
— Vai ficar gritando igual a uma criança mimada, é?
— Ela se colocou na minha
frente, com as mãos na cintura e sua carranca de sempre. — Não
adianta você chorar, ela não vai voltar por isso.
— Por que isso aconteceu comigo, Mademoiselle
Tissot? Isso não é justo!
— Deus castiga aqueles que merecem. — Heloíse
começou a me despir, retirando o vestido e me beliscando
simultaneamente. — É você que lava seus vestidos, Samantha?
Acha engraçado chegar todo dia imunda em casa? Sua mãe criou um
animalzinho, isso sim. Uma criança sem modos, que não sabe se
comportar nem obedecer e, ainda por cima, se acha no direito de
questionar qualquer coisa. E por isso você está sendo castigada,
porque você é uma péssima criança e que merece uma lição para
crescer como uma mulher de sua classe.
Aquela não era a primeira vez que me dirigiram a
expressão “mulher de sua classe”, mas foi a primeira que eu de
fato me importei. A partir daquele momento descobri que odiaria ser a
pessoa que esperariam que eu fosse.
— Não… — As
lágrimas falhavam minha voz. — Eu quero minha mãe de volta!
— Você acha que Deus irá escutar uma garota horrível
como você? Se Ele não
trouxe de volta nem quem era bom para quem merecia, não trará para
você. Agora, pare de chorar que isso está me atormentando e não
vai melhorar o que está sentindo.
Eu não me calei e ela se estressou. Heloíse pegou a
escova que descansava sobre a penteadeira e voltou até mim.
Ergueu-me pela orelha e surrou incessantemente minhas costas e
pernas. “Você não vai parar de chorar?” Ela gritava perto do
meu rosto, sua voz estava mais alterada do que de costume. Quando sua
raiva diminuiu e ela se satisfez, deixou-me largada no chão,
chorando com ainda mais vontade, e foi arrumar meu banho. Eu já
estava acostumada com os castigos impostos por ela, mas aquele foi
mais doloroso do que todos os outros. Não foi a dor de ser surrada,
foi a dor de ter perdido minha mãe e nem ao menos poder mostrar que
estava triste por causa daquilo. Foi a dor de ser abandonada sem
carinho e não ter nenhum ombro amigo para eu poder chorar. Foi a dor
de saber que tudo dali para frente seria diferente.
Acordei com alguém afagando meu ombro. Era a empregada,
uma moça baixa e de cabelos castanhos cuidadosamente presos em um
coque. Chamava-se Amélia e seus olhos também estavam vermelhos de
tanto chorar.
— Mademoiselle
Evans. — Ela falou carinhosamente quando despertei. — Seu pai
quer que a senhorita jante com ele.
— Não estou com fome. — Respondi secando os olhos.
Minha barriga roncou, mas eu a ignorei. Estava fraca e sem animo para
qualquer coisa.
— Minha querida, — Amélia tentou sorrir, mas seu
sorriso foi forçado e não conseguiu ser acolhedor. Percebi que
dividíamos as mesmas dores e me senti menos solitária. — foi uma
coisa horrível a morte de madame
Evans, mas a senhorita não deve ficar sem comer. Tem que ficar forte
e continuar sendo aquela menina alegre que dava vida a essa casa.
— Eu não estou com fome, Li. Eu quero ficar só e
chorar até poder me juntar a minha mãe.
— Não diga isso, Mademoiselle!
Uma coisa muito horrível para uma criança tão pequena desejar.
Deve ficar forte e bem! A senhorita verá que tudo vai dar certo.
— Minha mãe não está aqui. Não vai dar certo! —
As lágrimas voltaram a escorrer. Ela me abraçou carinhosamente e
beijou minha bochecha. Papai nem Heloíse gostavam quando os
empregados “se misturavam com os senhores da casa”, mas mamãe
sempre me ensinara a gostar de todos e considerá-los parte da
família, então correspondi ao seu abraço.
— A senhorita está queimando em febre. — Ela se
afastou assustada. — Vou pedir para seu pai chamar o médico e vou
subir com seu jantar.
Amélia saiu do quarto e eu voltei a me deitar. Estava
cansada por causa da febre, mas não queria voltar a dormir e sonhar
novamente com mamãe. Eu não queria acreditar que ela havia partido.
Mesmo sabendo que eu teria que me convencer mais cedo ou mais tarde.
Fechei os olhos e cochilei por algum tempo, quando
acordei, Heloíse estava parada junto a porta com a bandeja do
jantar.
— Uma criança tão mimada que fica doente por coisas
desnecessárias. — Foi o que ela disse ao notar que eu estava
acordada. — Não preocupe seu pai com seus problemas, ele já tem
os dele.
— O que houve com a mamãe? — Perguntei baixinho.
Ela colocou a bandeja em meu colo e se sentou na minha frente.
— Sua mãe foi encontrada morta enquanto tomava banho.
— Eu quero ir ficar com ela.
— Ela foi uma boa pessoa e está
em um bom lugar. Se
a
senhorita morresse, não
ficaria com ela, iria para um lugar ruim pagar pelos seus pecados.
— Por que a senhorita não gosta de mim?
— Eu gosto de você, Samantha. E por gostar que me
preocupo e quero lhe educar da melhor forma possível para que seja
uma dama quando crescer. Vou pedir para o médico vir amanhã e lhe
ver. Agora, coma o seu jantar e não fale mais de sua mãe para o seu
pai. Ele está sofrendo muito com isso e não vamos preocupá-lo
mais.
— Sim, Mademoiselle
Tissot.
— Ah! — Ela exclamou depois de se levantar e estar
quase atravessando a porta. — Agora que a sua mãe não está mais
aqui, a senhorita sabe que as coisas mudarão, não sabe? Então é
bom passar a se comportar se não quiser ser castigada, e dessa vez
não vai ter ninguém para me fazer ser mais tolerante com a
senhorita.
— Sim, Mademoiselle
Tissot.
Ela sorriu de lado. Seus olhos verdes brilhavam, eu
sentia aquela raiva com a qual estava tão acostumada. Eu sabia que
as coisas seriam piores para mim dali em diante.
O médico veio na manhã seguinte. Eu tinha piorado e
não conseguia nem ao menos levantar minha cabeça. Ele pediu para
que eu descansasse e receitou alguns remédios – que Heloíse não
me deu. Passei longos e entediantes dias sozinha no quarto, tendo
todo tempo do mundo para pensar sobre o ocorrido e chorar o quanto eu
quisesse. Amélia vinha sempre me trazer comida e me alimentava com
carinho, como se quisesse mostrar que, pelo menos alguém naquela
casa, se importava comigo. Ela às vezes lia alguma coisa ou me
contava as histórias de sua família, mas nunca se demorava demais.
Procrastinei minha melhora ao máximo. Depois de alguns
dias, eu já sabia que minha situação era causada pelo meu
emocional e que, se eu me esforçasse, melhoraria mais rapidamente,
mas eu queria continuar longe do mundo. Nem papai, nem Heloíse foram
me ver naqueles dias e aquilo me motivava mais ainda a continuar
deitada. Eu pensava que quanto mais eu ficasse de cama, mais
demoraria para eu sofrer nas mãos de minha governanta.
Porém, era doloroso ter tempo para pensar em mamãe. Eu
não queria ficar prostrada naquela cama para sempre, nem ao menos
morrer, mas pensar que a minha vida continuaria sem ela era
angustiante.
Mamãe e eu sempre fomos muito próximas. Eu fui a única
filha de três que sobreviveu. Minha irmã mais velha morreu aos três
anos de gripe, e meu irmãozinho, ainda na barriga. Por isso talvez
minha mãe tivesse se apegado tanto a mim. Fazíamos quase tudo
juntas. Ela fica a maior parte do tempo em casa, ensinando-me inglês,
piano e a ler. E ficávamos contando histórias e criando nossos
próprios contos.
Nós duas estávamos sempre juntas e nos amávamos
muito. Papai raramente aparecia em casa e eu quase não o via, então
me apeguei mais a mamãe. Heloíse também pouco ficava comigo, só
nas horas de me arrumar ou quando mamãe precisava sair para ir a
algum compromisso. Eu não conseguia imaginar como seria dali para
frente sem ter ela para me proteger de Heloíse ou para me fazer rir
nos dias de chuva e me fazer notar as coisas mais simples ao meu
redor. Eram tantos momentos bons que eu nunca mais teria…
Mas uma coisa eu tinha certeza: ela não iria querer que
eu ficasse triste ou sofresse por sua causa. Ela não iria querer que
eu desistisse de minha felicidade.
Peguei um livro de capa azulada que estava dentro do
criado-mudo e o observei demoradamente. Era o livro que mamãe
costumava ler para mim antes de dormir. Estava todo na língua
materna dela, o Inglês, e eu pouco conseguia ler sozinha, mas já
tinha decorado algumas histórias de cor de tanto que tinha escutado.
Abri no meu conto favorito e passei o indicador pelas letras marcadas
no papel amarelo.
— Mamãe… — Sussurrei para o livro como se ele
fosse transmitir minhas palavras para o Céu onde minha mãe deveria
estar. — Eu vou ficar bem, eu prometo. Prometo que vou tentar
voltar a ser feliz, mesmo doendo muito ficar longe da senhora.
Guardei o livro de volta e tentei me levantar. Ainda
estava fraca, mas agora queria abrir as cortinas e tentar ver a
igreja onde estava o túmulo da família. Caminhei tropegamente até
a janela e me sentei no parapeito. Sequei minhas lágrimas no momento
que manifestaram descer e inspirei fundo.
Calcei meus sapatos e saí vagarosamente do quarto,
rumando para a porta da cozinha. Eu iria ver o lugar onde mamãe
estava e ficar com ela, nem que por ínfimos segundos. Não consegui
andar muito, já que Heloíse apareceu no andar de baixo e me impediu
de continuar.
— Aonde acha que está indo?
— Eu queria ir ver onde mamãe foi enterrada.
— E quem disse que vou deixá-la sair? Você está
doente e não vai ficar andando por ai para piorar.
— Ah, por favor. —
Agarrei-me a sua saia. Ela franziu o cenho. — Vai ser bem
rapidinho, Mademoiselle
Tissot. Eu só quero me despedir dela.
— Não. A senhorita vai voltar agora para seu quarto e
se preparar para o jantar. Seu pai irá jantar em casa e ele quer
conversar com você. É bom se comportar e parar com essa besteira.
— Não é besteira! — Respondi exasperada. O modo
que Heloíse falava do meu sofrimento já estava começando a me
estressar. Quem era ela para falar que a minha dor era besteira?
— Vá agora para o seu quarto.
— Não vou!
— Está me desobedecendo? — Ela me pegou no colo e
subiu comigo de volta, mas não fomos para meu quarto. Heloíse me
levou até o escritório de papai. Ele estava em casa e aquilo foi
mais surpreendente.
Papai era um senhor alto, de cabelos loiros iguais aos
meus. Sua expressão era sempre séria, mesmo nos momentos felizes
que tivemos juntos com mamãe. Não sei se ele sempre foi assim, mas
era desde que me lembrava. Ele odiava quando eu andava pela casa,
então eu conhecia muito pouco daquele imenso lugar. E aquele
escritório se excetuava em minha lista.
— O que ela faz aqui? — Ele ergueu os olhos
castanhos para Heloíse. Ela me empurrou para a frente dele.
— O senhor tem que dar uma lição em sua filha. Ela é
uma criança insuportável que nem mais segue minhas ordens. Não sei
mais o que fazer.
Ele desceu os olhos novamente para mim e me estudou
demoradamente. Não havia nenhuma gota de afeto em sua expressão e
aquilo me magoou profundamente. Eu sabia que ele nunca havia sequer
me amado, mas nunca pensei que me odiasse o mesmo tanto que Heloíse.
— Por que desobedeceu à sua governanta, Samantha? —
Falou pausadamente.
— Porque quero visitar a igreja
onde mamãe está, papai. Eu não me despedi
ainda.
— Você está proibida de falar de sua mãe e de sair
dessa casa. — Declarou. Eu senti minha face perder o sangue e meu
queixo cair. As lágrimas surgiram em meus olhos, mas se mantiveram
lá. — Heloíse me comunicou sobre seu comportamento e eu concordo
com ela. Você tem muito o que melhorar e não irá ver o túmulo de
sua mãe ou sair de casa enquanto eu não estiver satisfeito com os
seus modos.
— Por favor, papai. — Eu abaixei a cabeça e encarei
o chão. Nunca consegui manter meu olhar fixo
quando aqueles olhos sérios me encaravam. Era como se quisessem me
humilhar mesmo sem falarem.
— Castigue-a como quiser. — Ele disse para Heloíse.
— Estou ocupado para me preocupar com isso
agora.
Heloíse abriu um sorriso de lado e me puxou para fora
do quarto.
Eu não tinha ninguém para me defender e nem ao menos
conseguia fazer aquilo sozinha, então preferi aceitar o conselho de
Heloíse e passei a seguir todas as suas ordens sem nem ao menos
questionar. Eu não queria mais sofrer sem merecer, então preferi
apenas obedecer e fingir que estava tudo bem. Mas dentro de mim eu
sabia que nada estava, nem ficaria bem.
Sentada na penteadeira, encarando-me no espelho, eu
sentia o frio do quarto envolvendo minha pele. O dia e a semana
inteira tinham sido consumidos por um calor insuportável, mas,
naquele momento, eu só conseguia sentir frio. Os olhos verdes da
minha imagem no espelho perderam o brilho e a única luz notável era
o reflexo da luminosidade do quarto em minhas lágrimas. Elas estavam
quietas lá, prestes a escorrer pela pele esquálida, mas imutáveis
em seus lugares de vigia.
Heloíse penteava meus cabelos com força, desmanchando
os cachos dourados com a escova e movendo suas mãos com velocidade e
destreza. Eu gostava quando penteavam meu cabelo, normalmente só
mamãe fazia aquilo e, mesmo demorando uma eternidade por conta do
tamanho e da quantidade de fios, era sempre um momento agradável.
Mas naquele instante não poderia ser. Eu não conseguia apreciar
nada que Heloíse fizesse, muito menos quando passava a escova com
tanta força que parecia inclinada a arrancar-me tufos.
—
Seria
melhor se você tivesse um cabelo mais curto. — Comentou ao
término. Ergueu-se e eu finalmente pude ver seu rosto, que antes se
escondia atrás de minha cabeça.
—
Obrigada
por penteá-los para mim. — Agradeci apenas para não permanecer em
silêncio. Não queria dar brechas para ela falar mais qualquer
coisa.
—
Vamos
descer para o jantar. — Ela me puxou da
cadeira
e me colocou a sua frente. Estudou-me de cima a baixo como costumava
fazer quando me vestia. Eu odiava aquele tipo de roupa, muito tecido
para pouca necessidade. Preferia os vestidos mais simples que usava
no dia a dia, mas Heloísa nunca me permitiria descer para jantar com
papai usando qualquer roupa mais confortável. Era
roupa de camponesa, ela costumava dizer.
Descemos em silêncio até a sala de jantar e eu fui
sentada em uma cadeira de costas para a porta. Heloíse se sentou ao
meu lado e ficamos esperando papai descer, ainda em silêncio. Ele
demorou como de costume. Eu já lutava contra minha barriga para que
ela não fizesse nenhum ruído alto demais – para eu não ser
castigada pela minha “falta de educação”, quando ele entrou
apressado e se sentou na cadeira de frente para mim.
—
Boa
noite, Papai. — Sussurrei.
—
Boa
noite, monsieur
Evans. — A governanta o cumprimentou com um sorriso largo.
Ele nos respondeu com um gesto de cabeça e pediu para
as empregadas servirem o jantar. Papai conversava com a governanta
enquanto eu comia em silêncio. Minha presença não importava para
os dois e eu nem ao menos sabia o que estava fazendo ali.
—
Samantha.
— Papai me chamou quando terminei e já estava me entediando
encarando a decoração da sala.
—
Sim,
papai?
—
Achei
isso no meio de meus papéis. — Retirou um papel dobrado do bolso.
Estendeu-o para mim e eu me levantei vagarosamente para pegá-lo. —
Pensei que iria lhe interessar.
Era um desenho feito há anos. Eu e mamãe estávamos
representadas ali. Eu me lembrava bem da data que papai havia
desenhado-o, até do modo como parecia menos sério quando pediu para
que nós nos sentássemos mais próximas uma da outra e não nos
movêssemos. Mamãe era sempre sorridente nos raros momentos que ele
ficava em casa e eu ficava feliz também. Mas então, esses momentos
começaram a ser mais raros ainda e ele praticamente sumiu de minha
vida.
—
Obrigada,
papai. — Agradeci com lágrimas nos olhos, parte por causa do
realismo da imagem de mamãe, parte pelas lembranças de nossa
felicidade. — Vou guardá-lo com cuidado.
—
Espero
que assim seja feito. — Ele esboçou um sorriso de lado. — Eu sei
que o que aconteceu com a sua mãe foi algo muito triste e…
Inesperado, mas peço que finja que não aconteceu. Não quero me
chatear com isso, nem que você fique sofrendo demasiadamente. Temos
que seguir a vida e tirar o melhor proveito do resto dela.
—
Sim…
Senhor.
—
E
me prometa que irá obedecer à Heloíse, sim? Não quero mais ouvir
reclamações a seu respeito e nem me preocupar com seu
comportamento.
—
Prometo,
papai. — Ele passou a mão “carinhosamente” em minha cabeça.
—
Amanhã
poderá ir ao quarto de sua mãe e pegar o que lhe interessar lá
dentro. O resto será vendido.
Agora suba para seu quarto, quero ficar um tempo a sós com
Mademoiselle
Tissot.
—
Sim,
senhor, e
obrigada.
— Despedi-me com um aceno de cabeça e me retirei. Não fui para o
quarto, caminhei um pouco no corredor e entrei na cozinha.
Os empregados jantavam perto da lareira. Amélia fez um
gesto para que eu me aproximasse e senta-se ao seu lado. Guardei o
desenho dentro do vestido e me sentei no banquinho baixo entre os
empregados.
Paulette me serviu um pouco de doce, mas eu não comi.
Encostei a cabeça no colo de Amélia e fiquei assistindo a conversa
dos que estavam na mesa. Serge, o jardineiro, conversava sobre como
as flores estavam bonitas naquela semana, enquanto Paulette comentava
que deveria ser a alma de mamãe que agora cuidava de nossa
residência.
“Durma
um pouco, querida. Você ainda está quente.” Amélia sussurrou em
minha orelha. Eu não queria dormir, mas o calor da cozinha me deixou
sonolenta, transformando a imagem de todos ali em um borrão até
findarem-se na escuridão de meus sonhos.
O que acharam? Não deixem de comentar para eu saber a opinião de vocês! Isso ajuda muito, além de melhorar a obra cada vez mais.
Beijocas e até mais.
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