O Jogo

Sentei-me à mesa. Uma atordoante luz estava acesa e virada diretamente para mim. Só ela iluminava porcamente o ambiente. A profunda escuridão da noite tomava o restante do lugar.

Eu não conseguia ver a pessoa que estava na minha frente, mas ouvia sua calma respiração. Ela estava lá, sem dúvida me encarando com seus olhos assustadores.

– Você sabe o porquê de estar aqui? – A voz soou alta, clara, doce como uma embaladora canção de ninar. Costumava sempre falar assim, tragando-me cada vez mais para o tabuleiro de seu jogo. Eu ri, como também costumava fazer, provavelmente pensando que, daquela vez, teria alguma chance contra ela. Não tinha e, tanto eu quanto ela, sabíamos disso.

– Teve algum dia que eu soubesse? Só estou aqui. – Respondi, a voz treinando oscilar, mas eu me mantendo focada em não perder a batalha daquela vez. Pelo menos daquela vez eu ganharia. Meus olhos se pregaram na escuridão, onde eu sabia que ela estava.

– Acha que desta vez vai conseguir se livrar de mim?

– Eu nunca consigo me livrar de você. Você sempre está ai me espreitando. Sempre vai aparecer quando julgar oportuno. Seria só uma questão de horas.

– Ou será que é quando você julgar ser oportuno?

– Em que universo eu iria querer encontrar você?

– Você sempre quer. Encontra em mim o que não vê em outro lugar. Eu sou sua desesperada fuga. Seu martírio mais doce.

– Eu te odeio. – As palavras saíram cheias de sofrimento, mas nem mesmo eu senti que falava a verdade. Ela tinha, nem mesmo que um pingo, razão.

A outra pessoa gargalhou. Escutei os pés da cadeira se afastando e passos lentos sobre o assoalho tomado pelas sombras. Não parei de encarar o invisível ponto a minha frente. Senti mãos mornas prendendo meus pulsos nos braços da cadeira. As pontas de seus dedos passearam pelo dorso de minhas mãos, massageando-as com uma inquietante delicadeza. De súbito, os dedos me largaram e foram puxar minha cadeira para trás, deixando espaço suficiente entre a mesa e eu, para que a pessoa pudesse passear livremente ali.

Que o jogo começasse.

– Recebeu seu boletim? – A pessoa perguntou na maior naturalidade, como se ela tivesse o direito de se envolver. Fiquei em silêncio, o que foi entendido como a resposta. As mãos agarraram meu pescoço, apertando-o com força por incontáveis segundos.

Enforcaram-me até quase o ponto de eu desfalecer. Então, os dedos me deixaram e eu senti uma estimulante e almejada lufada de ar entrando queimando pela minha laringe. Os pulmões inflaram em todo seu volume e eu arquejei.

– Você mostrou para os seus pais e eles ficaram chateados? – Escutei-a mexendo em algo perto. Os sons metálicos faziam meus pelos se arrepiarem. – Brigaram com você? Te bateram? Disseram que era uma péssima filha e que não se importava com seus pais?

– Cala a boca!

– Está estressadinha? Eu adoro seu comportamento arredio. Só me faz ter mais vontade de continuar. Você sabe que não tem mais volta quando você está aqui.

Ela tinha razão. Eu estava amarrada a uma cadeira, desesperada por algo que era previsível. Eu teria que aguentar até o fim. Só sairia dali quando acabasse.

A pessoa ergueu a manga da minha camisa, deixando à mostra a série de marcas deixadas por nossos anteriores encontros. Eu escondia-as para que ninguém suspeitasse do que acontecia ali, mas era inútil fingir para mim mesma que tudo aquilo era apenas uma sádica fantasia. Não era. Nunca seria.

A brilhante ponta de um estilete beijou a epiderme. Em um lento movimentou, sulcou o braço, deixando uma nova marca e fazendo brotar um fiapo de sangue. Suprimi um agonizante gemido de dor, mordendo o lábio inferior com força, mas não consegui ser tão forte para impedir a primeira lágrima de descer. A ponta da lâmina mergulhava na carne, lentamente, como se para que eu sentisse cada milímetro de dor plenamente.

– Você sabe – A pessoa começou a cantar no ritmo de uma canção infantil. – Que no fundo. Eles sempre têm razão. Você nasceu. Nem devia. E só quer chamar atenção. Menina burra. Menina burra. Nem aqui devia estar. Seus amigos. Esquecem-te . Quando você vai pular? Pular. Pular. Ploft. Lá se foi. Lá se foi. Seu próprio amor.

Enquanto cantarolava, passeava a lâmina pelo braço. Dançando hipnotizante no ritmo de sua doente melodia. O sangue agora jorrava sem timidez, como minhas lágrimas. Minha boca foi tampada pela mão livre da pessoa, porque ela sabia que eu gritaria mais cedo ou mais tarde.

Meu pranto escorria como ferro quente pelas minhas bochechas.

– Esquecem-te. Ploft. Ploft. Não tem para quem olhar. – A voz zombava. – Eles sempre fazem isso. Ploft. Ploft. Não tem quem te amar.

Cortou-me novamente. Então, afastou-se, deixando-me sozinha para curtir a dor.

A pessoa saiu por algum tempo. Deixei o pranto fluir. Abaixei a cabeça e encarei o vivo sangue. Não sei quanto tempo passou. Não sei quanto tempo fiquei encarando o líquido fugir de mim. Mas ela voltou. Estapeou dolorosamente minha face esquerda, conferindo se eu estava acordada. Arfei em resposta. Ela carregava algo na mão fechada. Pequenos cristais escorriam pelos cantos de seus delicados dedos. Sal. Derramou um pouco sobre o corte e eu gritei alto, recebendo um novo tapa de prêmio.

– Seu sofrimento é poesia para mim, mas sabe que eu não gosto quando grita.

– Você é horrível…

– Eu sou uma boa pessoa. Estou te ajudando a lidar com seus problemas.

Ri com a piada, mesmo que a dor quisesse que eu me debulhasse em lágrimas.

– Vamos para o segundo round.

Ela rapidamente desabotoou minha camisa da escola, despindo-me. Passou o que sobrou do sal sobre toda a extensão da pele macilenta. Deixou-me novamente por alguns segundos, apenas o tempo que levou para pegar uma caixa de plástico branco que eu não havia notado até então. Assim que percebi o que era, puxei, em vão, o corpo para o lado. Desespero só fazia com que a pessoa fosse tentada a continuar mais e mais. Eu sabia, mas nunca aprendia.

Ela pegou uma pedra de gelo e a passou pela pele despida. Eu gemi de dor e agonia. Meu corpo queimava na mesma intensidade que tentava se livrar das cordas que me prendiam à cadeira.

– Isso é bom, não é? – Indagou enquanto fingia massagear minha barriga com a pedra de gelo. – Dói tanto quanto a merdinha da sua vida?

– Pa… Para… – Não conseguia pronunciar direito a palavra. Nem mais sabia se estava pedindo para parar com a tortura física ou verbal.

Meu corpo se debatia sob o fato de que eu estava indefesa. Não tinha como eu sair dali. Ele sabia que nada podia fazer para nos salvar.

A pessoa retirou a pedra de gelo de mim apenas quando eu não sentia mais minha pele.

– Eu sou a única pessoa que você tem. Sou a única pessoa em quem pode confiar. – Proferiu alto. Era verdade, sabíamos que era. Ela me segurou pelo queixo, eu fechei os olhos para não ter que encará-la. Acertou-me inúmeros tapas no rosto, enquanto eu me engasgava com os soluços.

Meu rosto devia estar sangrando. Eu já não me importava ou me preocupava com a dor. Soltou-me. Deixei minha cabeça cair de cansaço. Ela ainda formulou algumas frases de ódio, mas logo se retirou, deixando-me novamente sozinha.

Fiquei em silêncio, escutando meu choro, meu arfar afetado, o sangue que corria de meu braço… Tudo parecia gritar meu desespero e humilhação. Fechei os olhos com mais força, até minhas órbitas doerem.

Quando voltei a abri-las, fui contemplada por um par se olhos fundos. Eles me examinavam do mesmo modo que eu tragava os detalhes de sua completa forma (des)humana. Pele arroxeada. Lábios inchados por mordidas.

E o sangue que emanava de meu braço misturava-se com as lágrimas, descendo pelo ralo da pia.

3 comentários :

  1. Uffa consegui ler todinho rs..estou encantada,vc escreve muito bem..meus parabeens linda. *---*
    http://aspoesiasdananda.blogspot.com.br/

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  2. Bem profundo, haha. Acho que tem muita gente que passa por várias coisas ruins que não sabe mais que caminho seguir, em quem acreditar, que até a própria mente sabota seus pensamentos.

    http://manollitos.blogspot.com.br/

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