As luzes da rua estavam acessas, mas iluminavam pessimamente o lugar.
Passavam-se da meia-noite e a rua não estava vazia como de costume.
Um grupo de quatro homens vestidos de preto ocupava-se em espancar
uma criatura que se encurvava no chão e soltava gritos altos de dor.
Não eram apenas eles que estavam acordados. Uma moça observava o
funesto episódio sentada no parapeito de uma janela bem perto do
grupo. Os rapazes seriam bem capazes de vê-la se a iluminação não
fosse tão precária. Sua saia de marrom subia um pouco e, mesmo
antes sendo um pouco abaixo dos joelhos, deixava visível quase toda
a perna alva da moça. Ela abraçava a própria cintura mesmo ficando
incomodada com o espartilho apertado.
“Vão… Acabem logo com isso.” Mordeu o lábio inferior.
Estudava as figuras negras, de cartolas achatadas com detalhes em
metal. Elas não sentiam nada, nenhum pingo de remorso, estavam
gostando.
O grupo, depois de ter se satisfeito, deixo a pessoa jogada no chão
e se dissipou. A moça se levantou rapidamente, caminhou até a cama,
não a que ficava embaixo da janela em que estava e sim a perto da
porta onde um rapaz dormia tranquilamente, deu um chute no colchão e
derrubou o homem.
Ele se ergueu assustado, encarou o quarto escuro e franziu o cenho.
– Obrigado por ser sempre tão delicada, Eleanor. – Fez menção
de voltar a se deitar mas a moça o segurou pelo ombro.
– Venha me ajudar.
– Você me derruba da cama e ainda quer que eu te ajude? –
Penteou os cabelos castanhos com os dedos e então massageou os olhos
para que despertassem.
– Um rapaz… Na rua. Os soldados “revolucionários” novamente…
Ajude-me a trazê-lo para cá.
– Por que você não simplesmente desceu e os mandou pararem? Me
pouparia o trabalho de descer.
– Helmut. Vamos logo. – Ela o puxou pela mão porta a fora e
desceram quase que colados as escadas que dava para a saída.
Helmut ia reclamando que nem pode trocar o pijama sendo que a moça
já estava toda arrumada como se nem tivesse dormido. E não tinha
mesmo. Não demoraram para alcançar o corpo do rapaz. Eleanor se
agachou para virá-lo e ver se ainda tinha pulso.
– Você sabe que se eu tivesse descido seria nós dois espancados e
eu não poderia ajudá-lo. – Ela se desculpou temendo ter chegado
tarde de mais, mas por sorte ele ainda respirava. – Pegue os braços
dele. Cuidado para ele não engasgar com o sangue.
Helmut concordou com a cabeça. Levaram com dificuldade o rapaz para
dentro. Mesmo Helmut sendo maior do que o desacordado e provavelmente
conseguiria carregá-lo sozinho, estava tão sonado que não teria
conseguido sem Eleanor. Deitaram o rapaz na cama da moça.
O cavalete estava arrumado perto dos armários de metal. Eleanor
observava o rapaz deitado na cama. Rodava o pincel sujo pelo ar,
tinha acabado de pintar, mas não estava totalmente satisfeita. Deu
umas últimas pinceladas com a tinta vermelha e deitou o pincel no
copo de água. Ajoelhou-se ao lado da cama.
Era muito cedo ainda. Ela não tinha dormido nada aquela noite,
talvez pudesse descansar só um pouco antes do rapaz acordar. Deitou
a cabeça no colchão e caiu no sono. O sol saia timidamente ao leste
trazendo luz ao quarto.
O rapaz deitado perto da janela se levantou assustado, encarou a moça
com a cabeça perto dele e afagou os curativos. Onde estava? Quem era
aquela garota e, depois de ter estudado demoradamente o lugar, o
rapaz dormindo na cama distante? Cutucou delicadamente o ombro da
moça.
Eleanor agitou a mão pedindo para que ela a deixasse dormir mais um
pouco, mas então ergueu a cabeça e sorriu para o estranho.
– Finalmente acordou. – Ela sorriu. – Está se sentindo bem?
– Onde estou?
– Está no meio ateliê. Quer dizer… Meu e do Helmut. – Apontou
o rapaz que roncava na outra cama.
– Por que estou aqui?
– Porque os “revolucionários” lhe espancaram e você estava
caído no meio da rua.
– Por que me ajudou?
Eleanor encarou profundamente aqueles olhos negros. Teve tempo
suficiente para estudar o corpo escuro do rapaz enquanto o pintava,
mas os olhos, que passaram a noite fechados, ela não pode ver. Tinha
muito sentimento ali, mas ele estava assustado como se a moça
significasse algum mal.
– Porque você estava caído no meio da rua depois de ter sido
espancado.
– Não sei se…
– Pode confiar em mim? Eu não sou um dos revolucionários. Eu não
espanco estrangeiros. Poderia apenas dizer um obrigado e eu ficaria
feliz.
– Quem é você?
– Acho que é você que tem que responder isso.
– Eu perguntei primeiro.
– Da próxima vez vou deixar você morrer engasgado no próprio
sangue. – Levantou-se raivosa, mas não conseguiu dar um passo, o
homem a segurou pela mão.
– Eu… Eu sinto muito minha má educação. Estou um pouco confuso
ainda, entende?
– Entendo. – Não se virou, ele também não lhe soltou a mão.
– Obrigado pela ajuda. Meu nome é Sean. Eu venho do distrito das
águas.
– Quer dizer que… – Ela voltou a se ajoelhar. Sua voz se
transformou em um sussurro que segreda algo proibido. – Você tem
poderes não é?
– Sim… Por que a pergunta?
– Por isso que eles estavam te espancando. Nosso distrito é um dos
únicos que perderam os poderes no decorrer dos anos. Por isso os
“revolucionários” batem nos estrangeiros. Eles dizem que devemos
proteger nosso povo dos outros distritos porque eles só querem nos
reprimir e acabar com o nós.
– Mas isso não é verdade. – Ele se arrumou sobre a cama e
encarou a moça com mais vontade. Estava se interessando pela
conversa.
– Eu sei. Mas eles insistem em construir mais e mais coisas para se
“protegerem”. O que veio fazer aqui?
– Vim trazer uma carta para o governador para liberarem as pedras
para os outros distritos.
– Pedras. – Ela franziu o nariz. – Eles pararam de mandar, não
é verdade? O senhor não é o primeiro que vem aqui pedir para que
eles continuem com as remessas. Tiveram outros vários e com um fim
não tão bom quanto o seu.
– Nós precisamos delas. – Ele comentou baixinho. – Não temos
outra fonte de energia em meu distrito.
– Eu… – Ela demorou um pouco para responder. – Volte para o
seu distrito, eu vou falar com o governador.
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